O desempenho dos serviços de abastecimento de água e
esgotamento sanitário em 2019 trás à tona a enganação do discurso que enaltece
a eficiência dos serviços públicos privatizados. Torna-se cada vez mais
evidente que a eficiência dos serviços de água e esgoto em Manaus restringe-se
somente à habilidade de gerar lucros para os empresários da água e para os
grandes investidores do grupo Aegea Saneamento e Participações, que se
interessam unicamente pelo retorno financeiro dos seus negócios.
Notícias veiculadas pelos meios de comunicações em Manaus
revelam o quanto os serviços privados de água e esgoto decepcionam a população
manauense ao espoliar os moradores, atuando de forma medíocre, realizando
cobranças indevidas, elevando ao máximo o valor das tarifas, poluindo os rios e
igarapés, descumprindo leis (tarifa social), ignorando a solidariedade para com
os mais pobres e violando o direito humano à água e ao saneamento. Tudo isso
com o apoio da municipalidade local e a omissão dos órgãos públicos de defesa da
cidadania.
O Programa Estadual de Proteção e Orientação ao Consumidor
(Procon-AM) divulgou dados recentes, salientando que a concessionária Águas de
Manaus se encontra entre as duas empresas mais reclamadas no período entre
janeiro e novembro de 2019 (Acrítica, 26 de dezembro de 2019). Juntamente com a
Amazonas Energia, a empresa privada de água e esgoto de Manaus é responsável
por 50,71% das reclamações formalizadas na instituição.
A precariedade dos serviços realizados pela concessionária
Águas de Manaus também é detectada pela Ouvidoria da Agência Reguladora dos
Serviços Públicos Delegados do Município de Manaus (Ageman). Este órgão
divulgou recentemente que os serviços de abastecimento de água e esgotamento
sanitário são responsáveis por 91% das reclamações registradas na capital
amazonense (Portal do Holanda, 31 de dezembro de 2019). Em seguida, aparecem as
demandas relacionadas à iluminação pública, com 56 casos registrados em 2019.
A Agemam constata que os bairros e comunidades localizados
na zona Norte da cidade ainda concentram os maiores problemas referentes ao
abastecimento de água e ao esgotamento sanitário. Das 693 demandas registradas
pala Ouvidoria da Agemam, 29% referem-se a problemas localizados na zona Norte;
22% na zona Sul; 20% na zona Leste, 12% na Centro-Sul, 10% na Centro-Oeste e 8%
na zona Oeste.
Estas informações esclarecem porque há atualmente uma forte
tendência mundial à remunicipalização do abastecimento de água e esgotamento
sanitário, em que os municípios reassumem a gestão dos serviços transferidos
para a iniciativa privada. Esta tendência é fruto da percepção geral de que as
empresas privadas estão mais interessadas em responder às expectativas
financeiras dos seus investidores – muitas vezes residentes em outros países –
do que satisfazer as necessidades das comunidades locais. A remunicipalização
em Manaus, no entanto, está travada pela mentalidade neoliberal que
desqualifica as empresas públicas para favorecer a lógica capitalista de
acumulação de riqueza nas mãos de poucos endinheirados, produzindo desigualdade
social e pobreza.
Esta lógica da desigualdade social se expressa nos lobbies
empresariais que pressionam de todas as formas os governos para que transfiram
para o setor privado as empresas estatais mais rentáveis e desestruturarem os
serviços públicos que servem à população. Esta lógica perversa também pauta as
politicas públicas governamentais que buscam restringir ao máximo a ação do
Estado na garantia de direitos e na proteção dos mais pobres. Seguindo o
dinamismo cego do mercado, esta lógica se realiza em Manaus através da
exploração predatória dos recursos naturais (privatização da água e destruição
do Encontro das Águas) e na espoliação das energias dos trabalhadores para
alimentar a gula da elite econômica e política, gerando depredação ambiental e
condições de vida insustentáveis para as classes menos favorecidas.
Nestas circunstâncias em que os serviços de saneamento são
precários há fortes evidencias de que os mais pobres são os que sofrem os
efeitos mais adversos, pois eles não possuem os recursos suficientes para
satisfazerem as necessidades básicas. Portanto, a privatização dos serviços de
água e esgoto, ao transformá-los em mercadoria excluem expressivos grupos
sociais do acesso ao saneamento, gerando sofrimento e consolidando as situações
de pobreza.
Ademais, há também evidências de que em quase todas as
localidades onde há falta ou má distribuição de serviços de saneamento são as
mulheres que coletam água para manter a higiene do lar, portanto, elas são as
mais prejudicas. De fato, em vários países as mulheres demoram de quatro a seis
horas por dia para fazer isso, reforçando a dependência econômica delas dos
maridos, já que não são remuneradas por esse tempo. O longo percurso também
apresenta riscos a essas mulheres de sofrerem ataques de animais selvagens e
violência sexual, sobretudo no local onde lavam a roupa e tomam banho.
Léo Heller, Relator especial da ONU para o direito à água e
ao saneamento, recomenda que as políticas públicas incluam mulheres e grupos
marginalizados na tomada de decisões de todas as etapas do planejamento e
políticas e leis de saneamento, monitoramento e avaliação (Amazonas Notícias,
23 de novembro de 2016).
Percebe-se, assim, que não é civilizado que os serviços de
água e saneamento sejam transformados em mercadoria dificultando o seu acesso
aos mais pobres. A privatização destes serviços não somente excluem setores
expressivos da sociedade, mas também fragiliza a democracia, na medida em que
fecha a porta da participação cidadã e do controle social sobre políticas
públicas que tocam em necessidades tão básicas para populações com perfis
diversos.
Há duas décadas esta história se repete, abrangendo todas as
empresas que já assumiram os serviços de água e esgoto na cidade (Lyonnaise des
Eaux, Solvi e Águas do Brasil). Diante dos dados recentes apresentados, é
possível contatar: as inúmeras denúncias e reclamações contra a empresa Águas
de Manaus (Aegea Saneamento e Participações S.A) mostram que a privatização dos
serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário não veio para servir
ao conjunto da população manauense, mas para favorecer à lógica da acumulação
capitalista, consolidando a Amazônia como reserva de exploração humana e
depredação ambiental.
A onda mundial de remunicipalização dos serviços de água e
esgoto é sinal claro de que as sociedades estão se levantando para reclamar o
seu direito de participar na tomada de decisões das políticas públicas e na
autogestão dos recursos produtivos que afetam suas condições de existência. Os
movimentos sociais emergentes se unificam não só em sua rejeição das políticas
neoliberais que geram exploração econômica, marginalização política, segregação
cultural e degradação da natureza. Não lutam apenas por uma maior equidade e participação
dentro da ordem estabelecida, mas para construir uma nova ordem social (Enrique
Leff, Saber Ambiental, 2015).
Fonte: Amazonas Atual