De 71 milhões de domicílios que existem no Brasil, 47,1
milhões possuem escoamento do esgoto. Ou seja, quase 24 milhões de casas não
possuem o serviço. Para 12 milhões de residências falta coleta de lixo e, em 10
milhões, não há distribuição de água. As informações são do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), segundo a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílio Contínua (PNAD), divulgada em 2018.
Diante do panorama excludente do saneamento básico, o
Congresso Nacional aposta em colocar a solução dos problemas nas mãos dos
empresários. Em 21 de agosto, a Câmara dos Deputados inaugurou uma comissão
especial para discutir o novo marco regulatório do saneamento, que altera lei
sobre o tema, em vigor desde 2007. Hoje, o serviço de tratamento de água,
esgoto e coleta de lixo é oferecido majoritariamente por companhias estatais. A
ideia é abrir caminho para a exploração dessas atividades pela iniciativa
privada.
Segundo o relator da proposta na Câmara, o deputado federal
Geninho Zuliani (DEM-SP), a meta é ter o projeto finalizado na primeira
quinzena de outubro. A matéria precisa ser aprovada em plenário. O parlamentar
trabalha com o texto já apresentado pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE).
A entrega ao setor privado, porém, já está em curso no País.
Em 2018, o então presidente Michel Temer (MDB) lançou medida provisória com
teor semelhante, mas caducou. Foi na gestão dele que se deu andamento à
privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos no Rio de Janeiro (Cedae),
gigante do saneamento no Rio de Janeiro. Em São Paulo, o governo de João Doria
(PSDB) apontou para 2020 como o ano da privatização da Companhia de Saneamento
Básico do Estado (Sabesp). O governo mineiro, de Romeu Zema (Novo), também quer
apresentar proposta de privatização da Companhia de Saneamento de Minas Gerais
(Copasa) como projeto para o ano que vem.
No Rio Grande do Sul, de Eduardo Leite (PSDB), a Companhia
Riograndense de Saneamento (Corsan) anunciou edital com a maior parceria
público-privada (PPP) da história do estado. A empresa vencedora deve receber
9,5 bilhões de reais de pagamento da Corsan, ao longo de 35 anos de contrato.
No Rio Grande do Norte, também há previsão de abertura do capital privado da
Companhia de Águas e Esgotos (Caern), conforme declaração da governadora Fátima
Bezerra (PT) a CartaCapital: “Não vamos privatizar a nossa companhia de águas,
no entanto, está em estudo uma parceria público-privada que abriria a
capitalização da Caern, mas sem o estado perder o controle acionário”.
Ideia sobre eficiência do setor privado é falácia, diz
Federação
A Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), que reúne 41
entidades no ramo de saneamento, meio ambiente, gás e energia, é contrária ao
projeto em tramitação na Câmara. A organização defende, em primeiro lugar, que
a política macroeconômica do Estado favoreça investimentos em empresas
públicas, estratégia enfraquecida após o congelamento de gastos imposto pela
aprovação da Emenda à Constituição nº 95. A FNU também pede a retomada do
Conselho Nacional das Cidades, extinto pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) em
decreto de abril. Outra proposta é reverter impostos de PIS/Cofins para um
fundo nacional de universalização do saneamento.
Entrevistado por CartaCapital, o assessor de saneamento da
Federação e mestre em Planejamento e Gestão do Território pela Universidade
Federal do ABC, Edson Aparecido, considera um equívoco responsabilizar a Lei
Nacional do Saneamento pela falta de universalização e argumenta que, na lógica
do lucro, não há garantias de que áreas mais pobres, como as rurais, sejam de
fato atendidas.
“A possibilidade de ter um avanço do saneamento exatamente
nas áreas que hoje são mais rentáveis, nas áreas onde você já tem um índice
elevado de atendimento, é muito mais provável do que a garantia de que o setor
privado vá atuar onde precisa atuar, que é nas áreas mais pobres, nas
periferias das cidades e nas rurais, onde efetivamente mora a população que tem
menos condição de pagar. Por óbvio, a lógica do lucro vai dificultar o acesso
das pessoas mais pobres aos serviços”, comenta Aparecido.
Na avaliação do especialista, também secretário executivo no
Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), o setor
privado diz que vai resolver o problema dos investimentos, mas, na verdade, vai
buscar recursos na Caixa Econômica Federal e no Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Os fundos oriundos genuinamente das
empresas serão pequenos, ele considera.
O movimento de privatizações de empresas de saneamento já
data dos anos 1990, explica Aparecido. O especialista cita o caso da empresa
Águas de Manaus, na capital do estado do Amazonas, privatizada nos anos 2000.
Um ranking divulgado este ano pelo Instituto Trata Brasil coloca o município
como o terceiro pior entre as 100 maiores cidades brasileiras. Segundo a
Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, a tarifa aumentou e o
tratamento de esgoto cobre somente 10% das moradias. O Estado, então, voltou a
colocar recursos para que não haja colapso no atendimento.
“Manaus é um bom exemplo de que é uma falácia essa ideia de
que o setor privado é mais eficiente que o setor público. Você ainda tem 600
mil pessoas na capital sem água. O setor privado coleta apenas 30% dos esgotos
e só 10% recebem algum tipo de tratamento”, argumenta. “O setor privado sempre
esteve presente na atuação do saneamento, seja nas obras, na elaboração de
projetos. O que eles querem agora é controlar a gestão das empresas, o setor
comercial, de contratações, cuidar da gestão como um todo.”
Projeto não estimulará investimentos, afirma especialista
Engenheiro civil e ex-secretário de Saneamento do Ministério
das Cidades entre 2003 e 2007, Abelardo de Oliveira Filho também criticou o
projeto, em audiência pública realizada na Câmara, em 3 de setembro. Ele cita o
estudo do Instituto Transnacional (TNI), que aponta a tendência mundial de
reestatização de serviços públicos de fornecimento de água e esgoto.
Referenciado também pelo relator Organização das Nações
Unidas (ONU), o brasileiro Leo Heller, o levantamento aponta que, nas últimas
duas décadas, houve ao menos 180 casos de reestatização do fornecimento de água
e esgoto em 35 países, como França, Alemanha, Argentina, Bolívia e Moçambique.
O fracasso internacional da entrega do saneamento ao setor privado se deu
principalmente por falhas das empresas em atingir metas de universalização,
problemas com transparência e dificuldade de monitoramento do serviço pelo
setor público.
“O projeto não vai resolver os problemas de saneamento
básico no País, ao contrário, vai desestruturar completamente o setor,
destruindo tudo o que foi conquistado nos últimos 15 anos”, afirma Oliveira
Filho. “Destrói as empresas públicas estaduais de saneamento básico e
institucionaliza o monopólio privado do setor na prestação dos serviços
públicos. Não vai estimular os investimentos, ao contrário, levará à
precarização na maior parte dos municípios. A expectativa de aportes
elevadíssimos de recursos privados carece de sustentação em fatos e dados.”
“Você não vai ter ampliação do investimento em regiões
remotas porque não vai ser o interesse das empresas”, diz parlamentar.
Para deputado do PSOL, proposta é “mentirosa”
Para o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), a proposta
na Câmara é “mentirosa”. O parlamentar é um dos 28 titulares que compõem a
comissão especial. Braga afirma que um dos piores impactos do novo marco
regulatório será o aumento nas contas de água. Ele cita o caso de sua cidade
natal, Nova Friburgo, que teve a sua companhia de água privatizada e, segundo o
parlamentar, resultou no aumento das tarifas. Ele diz que acredita nas
condições de barrar o projeto, pela mobilização popular.
“As empresas privadas avaliam o bem água como uma mercadoria
que precisa ser explorada. A partir dessa avaliação, elas visam maximizar seus
lucros e não dar atendimento a regiões remotas onde investimentos maiores
precisariam ser realizados”, diz. “A proposta dele [do relator Geninho Zuliani]
é mentirosa, você não vai ter ampliação significativa do investimento em
regiões remotas porque esse não vai ser interesse das empresas. Primeiro,
porque elas não vão querer ampliar a realização de investimentos. Segundo, que
ela não quer fazer em áreas remotas porque depois elas terão que dar manutenção
ao investimento realizado.”
Procurada, a empresa Águas de Nova Friburgo afirma que o
reajuste tarifário está previsto no contrato de concessão firmado em 2009.
Segundo a companhia, “o reajuste é baseado em uma fórmula paramétrica, que
reflete as variações dos principais insumos da concessionária, como a tarifa de
energia elétrica, por exemplo, que subiu, em 2019, cerca de 10%”. A empresa
afirma que, antigamente, a cidade não contava com coleta e tratamento de
esgoto. Hoje, diz nota, 99% da população tem água tratada e 95%, esgoto
tratado.
No entanto, em 2018, a Assembleia Legislativa do Estado do
Rio de Janeiro (Alerj) recebeu uma série de denúncias sobre irregularidades na
coleta de esgoto pela empresa. De acordo com as denúncias, disse a Alerj, a
companhia usaria a rede pluvial no lugar de uma rede específica. Segundo a
Comissão de Defesa do Meio Ambiente (CDMA) da Casa, a utilização da rede
pluvial é um grave descumprimento do contrato de concessão. A Alerj e a Câmara
Municipal de Nova Friburgo foram questionadas sobre a resolução dos casos, mas
não obteve resposta até o fechamento desta matéria.
Relator: declaração de Braga é “irresponsável”
Ouvido por CartaCapital, o deputado Geninho Zuliani
(DEM-SP), relator do projeto, classificou a avaliação de Glauber Braga como
“precoce e irresponsável”.
“Eu não sei de onde que o deputado tirou essas informações,
é muito precoce e irresponsável a declaração de que vai haver aumento. Porque,
no fundo, as agências reguladoras funcionam para isso. A taxa de água e esgoto
tem que ser justa e módica. Então, afirmar isso, nessa altura do campeonato, sem
o relatório pronto, é, no mínimo, irresponsável”, diz Zuliani. “A situação que
está, com 100 milhões de brasileiros sem acesso a esgoto, talvez não preocupe a
ele, mas preocupa muito a mim.”
Segundo o parlamentar, a classificação do sistema tarifário
é um dos pontos mais controversos, pois há casas que não têm hidrômetro e,
portanto, municípios que não têm como medir o consumo acabam aplicando taxas
mínimas ou dispensando a cobrança. Ele pediu um levantamento a entidades para
investigar esses casos. Zuliani argumenta que, para universalizar o saneamento
básico, é preciso investir 600 bilhões de reais. A ideia é basear o projeto em
três pilares: investimento, concorrência e regulação.
“Esse dinheiro todo que nós precisamos só pode vir do
mercado financeiro, do setor privado, de financiamentos, isso é um fato. Sobre
a concorrência, é ela que traz o melhor preço, a qualidade e a eficiência. E no
caso da regulação, não existe bom contrato de concessão, nem de programa, nem
de terceirização ou PPP, se não tiver uma agência reguladora que vai fiscalizar
os contratos e tomar decisões sobre a questão tarifária.”